sexta-feira, 20 de março de 2015

A ARTE DO KARATE QUE ME ENSINARAM



Karate é uma arte marcial. Esta é a frase que precisa ser repetida: está tudo lá! Marcial, porque diz respeito à guerra, ao combate (e, portanto, tem que ser eficaz em situação real). Arte, porque diz respeito à técnica, à disciplina, à filosofia, à aprendizagem ao longo da vida, à história, à cultura (e sua transmissão intergeracional) e à beleza.

O Karate resulta de um processo de transmissão cultural que atravessou as civilizações orientais durante séculos para se consolidar no Japão nos finais do séc. XIX. 

Karate-do significa a “via das mãos vazias”. Uma via não é um desporto, um jogo. É uma filosofia de vida, um caminho que decidimos percorrer e que nos ajuda física e mentalmente a sermos melhores pessoas. O fim último do Karate é o desenvolvimento humano/pessoal através da prática continuada (ao longo de toda a vida) de um conjunto de procedimentos que foram transmitidos, de mestres para discípulos, ao longo dos tempos. Busca-se a harmonia pessoal através da interligação corpo-mente que a prática do Karate-do permite. O Karate não é uma competição com os outros mas sim uma luta interior para fazermos cada vez melhor, sermos cada vez melhores.

Por isso não podemos olhar para o Karate unicamente como um desporto. É que o Karate desportivo corre o risco de distorcer o treino e até a própria competição, com o grande objectivo de gerar um espectáculo que seja rentável. A verdade é que têm vindo a ser alteradas as regras da competição, quer dos katas (a execução coreografada de um conjunto de técnicas pré-definidas que simulam um combate contra múltiplos adversários), quer dos combates, muitas vezes não indo de encontro à tradição e ao verdadeiro significado dessas actividades. Nesse desporto, os mestres passam a ser treinadores, os discípulos, atletas, e o objectivo último do treino passa a ser o ser-se campeão. Com isso, o esforço, empenho e dedicação desses atletas corre o risco de não ser aproveitado para o desenvolvimento do Karate-do…

Muitos desejam até tornar o Karate um desporto olímpico. Mas o Karate olímpico corre o risco de ser um mero jogo de esgrima (sem espadas) entre os combatentes e os katas uma mera exibição ginástica. Não sonho isso para o Karate. Temo que isso seja mais um passo decisivo para se destruir o Karate-do, acabando com os seus estilos diversos, com a sua pluralidade no treino (onde se deve combinar a técnica de base, o combate, os katas e a defesa pessoal), e com o seu verdadeiro objectivo: um crescimento humano harmonioso de longo prazo.

Infelizmente, o Karate tem sido enquadrado legalmente apenas como um desporto (mas tempos houve em que era tido como arte marcial), aplicando-se-lhe o mesmo tipo de regulamentos e sendo financiando na lógica de todas as federações desportivas. 

Pratico Karate Shotokan desde os seis anos de idade e tive o privilégio de me terem ensinado Karate-do. Desde muito cedo tive estágios com mestres japoneses que, ano após ano, repetiram o verdadeiro sentido desta arte marcial. Quando hoje, já com responsabilidades de instrução, ensino Karate-do, cumpro o meu dever e transmito aquilo que os mestres me ensinaram.

Quando decidirem praticar Karate (ou pôr os vossos filhos a praticar) não se esqueçam duma coisa: o Karate desportivo é tão benéfico para as pessoas como qualquer outro desporto… Se quiserem algo que vá para além duma prática desportiva devem procurar organizações que mantenham a prática de Karate-do. Procurem associações que tenham estágios regulares com mestres japoneses e onde a competição seja encarada como um mero acessório (e não o centro) da prática do Karate.

No fim do dia, a pergunta que o karateca tem que fazer é esta: imagina-se a continuar a praticar Karate mesmo que não existam competições, graduações ou exames?

(Gabriel Leite Mota, Publicado no P3 a 10 de Julho de 2013)

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